Em Salvador, Casa onde Jorge Amado morou abre como memorial nesta sexta
Depois de 11 anos fechada, a casa de número 33 da rua Alagoinhas, no bairro do Rio Vermelho, onde viveu o casal de escritores Jorge Amado e Zélia Gattai, pode agora ser visitada pelo público. O imóvel foi totalmente reformado pela Prefeitura do Salvador, numa intervenção que contou com o apoio da Fundação Casa de Jorge Amado e da família do casal que encarna e simboliza mundo afora a cultura baiana e o espírito libertário do povo da boa terra.
No sábado (08) e domingo (09), a Casa do Rio Vermelho – Jorge Amado e Zélia Gattai estará aberta apenas para convidados. A partir da próxima sexta-feira (14), o memorial poderá ser visitado por todos. Inicialmente, a casa ficará aberta às sextas, sábados e domingos, das 10h às 17h. O valor do tíquete de entrada é de R$20, com 50% de desconto para estudantes universitários e idosos. Estão isentos professores do ensino fundamental e médio, bem como estudantes de escolas públicas municipais e estaduais que visitem o espaço com agendamento, além de crianças de até cinco anos de idade.
“O objetivo é que a Casa do Rio Vermelho possa ser autossustentável. Por isso estipulamos o valor de R$20 a inteira para o acesso. É assim que funciona em vários museus e memoriais no mundo inteiro”, afirmou o secretário de Desenvolvimento, Turismo e Cultura, Guilherme Bellintani. O investimento na reforma foi de R$6 milhões, entre recursos públicos e privados, e a Casa do Rio Vermelho vai ser, além de um equipamento turístico importante para atrair visitantes nacionais e internacionais, gerando emprego e renda em Salvador, um estimulo à cultura, além de aumentar e o interesse pela literatura.
“Estamos firmando uma parceria com a Secretaria Municipal de Educação para que a Casa do Rio Vermelho seja frequentemente visitada por estudantes que irão ter contato com um universo cultural importante e que retrata também a história de Salvador e da Bahia. Isso sem qualquer custo. Acreditamos que iremos, dessa forma, estimular o interesse pela literatura e o surgimento de novos talentos”, afirmou Bellintani, lembrando que a capacidade do imóvel é de receber 200 pessoas ao mesmo tempo.
Resgate histórico e cultural
“Mostrar aos baianos, brasileiros e turistas um pouco da intimidade de Jorge e Zélia é algo simplesmente emocionante e cativante, de um valor cultural inestimável. Estamos cuidando da memória de dois escritores que representam a essência desta terra e que continuam extremamente atuais. Esperamos que, além de resgatar um pouco da história de Salvador e da Bahia através de personagens, textos e relações de amizade ou convivência, a Casa do Rio Vermelho também possa inspirar cada vez mais o surgimento de novos e combativos talentos na literatura e nas artes de uma forma geral”, avaliou o prefeito ACM Neto.
Comprada em 1960 com dinheiro da venda dos direitos do livro “Gabriela, Cravo e Canela”, de Jorge Amado, para a MGM, a casa mais tarde se transformou no título do livro de Zélia Gattai publicado em 2002 contando a história vivida pelo casal quando residiu no imóvel. No local, os escritores receberam visitas ilustres, como Glauber Rocha, Pablo Neruda, Tom Jobim, Dorival Caymmi, Roman Polanski, Jack Nicholson, Sartre e Simone de Beauvoir, só para citar alguns.
Filho de Jorge Amado e Zélia Gattai, João Jorge lembrou que a mãe sempre teve o sonho de transformar a Casa do Rio Vermelho em um memorial. "Ela custou a querer sair da casa, o que só aconteceu depois que teve um problema de saúde. A partir daí decidimos transformar o imóvel em um memorial. Fomos buscar apoio para isso. Recebemos muitas promessas, mas nada se concretizou. Finalmente eu e Paloma (Amado, a outra filha dos escritores) cansamos e resolvemos desistir. Mas nossos filhos tomaram a frente e apresentamos um projeto em 2012, depois que vendemos algumas obras de arte e conseguimos fazer uma ação emergencial para evitar que a casa desabasse. O prefeito ACM Neto nos disse em 2012, quando ainda era candidato, que iria fazer e fez".
Paloma Amado disse que a reabertura da casa, para onde os pais se mudaram fugindo da violência que começava a tomar conta do Rio de Janeiro a partir da década de 1960, provoca um turbilhão de recordações. “Acompanhamos a construção da casa que os meus pais adotaram como deles. Era a casa onde recebíamos os nossos amigos, cada um tinha o seu canto bonito, fresco, arejado. Eu fiquei com o segundo maior quarto e que, quando me casei, foi transformado em um grande closet. João e eu casamos com a diferença de um mês e, por a casa ter esvaziado de uma vez só, papai teve que passar seis meses nos Estados Unidos para se acostumar com o impacto. Mas a ausência não se prolongou tanto, pois João foi ser vizinho e tanto meus filhos quando os filhos de João também acabaram se criando nessa casa”, contou.
História contada por amigos e admiradores
Toda a riqueza contida na Casa do Rio Vermelho é contada nos diversos ambientes, somando mais de mil metros quadrados, incluindo o jardim onde as cinzas de Jorge e Zélia estão depositadas. Depoimentos de personalidades, amigos e familiares do casal que frequentaram o imóvel serão exibidos em vídeos que somam 15 minutos divididos em cinco telas na chamada “Roda de conversa”. “É uma lista vip mundial. E que vai crescer no futuro, quando teremos, por exemplo, o depoimento do cineasta Roman Polanski, que chegou a dizer que, na infância dele, os únicos livros que falavam de liberdade na Polônia eram os de Jorge Amado”, disse o curador do espaço Gringo Cardia, responsável pela implantação de museus em várias partes do Brasil e do mundo, incluindo o da Cruz Vermelha, em Genebra, na Suíça.
No total, são mais de dez horas de vídeos e projeções, num trabalho que contou com a coordenação de pesquisa do vice-reitor da Ufba, Paulo Miguez. Ou seja, é impossível conhecer a história do imóvel e do casal de escritores apenas em uma visita. Para tornar mais didática a experiência de mergulhar na intimidade de Jorge Amado e Zélia Gattai, a casa foi dividida em vários espaços, mantendo sempre as características originais, o rico acervo e documentos importantes, como cartas trocadas com personalidades nacionais e internacionais.
Além da “Roda de conversa”, os outros ambientes foram batizados de “A Bahia de Jorge Amado”, “A amizade é o sal da vida”, “A infância/Memórias de Dona Lalú”, “Os viajantes”, “Varanda”, “Amores e amantes amadianos”, “Zélia Gattai, companheira graças a Deus”, “Trocando cartas/O comunista”, “Sala de leituras”, “Muita vida, tantas obras”, “Os amados sabores de Jorge”, “Cozinha de Dona Flor”, “Lago dos Sapos” e “Jorge e o Candomblé”.
Amores e amantes
O quarto onde dormiam Jorge Amado e Zélia Gattai, espaço chamado de “Amores e amantes amadianos”, agora está visualmente povoado por personagens marcantes como Gabriela e Nacib, ilustrados em obras de artistas como Calazans Neto, Carybé e Floriano Teixeira. O visitante pode ainda ouvir narrações de trechos das obras que revelam como o amor e o sexo eram importantes para Jorge Amado.
Boa parte da inspiração de Jorge Amado veio das histórias contadas pela mãe, Dona Lalú, quando era criança. Essa relação está retratada no espaço “A infância/Memórias de Dona Lalú”. Nesse cantinho, há uma maquete da cidade de Ilhéus, onde o escritor, nascido no distrito de Ferradas, em Itabuna, viveu por muito tempo, e uma escultura de Jorge Amado com um ano de idade ao lado da matriarca. Já onde antes havia uma piscina está o “Lago dos sapos”, uma espécie de ranário, com sapos e rãs que tanto fascinavam o escritor, e a exibição da novela sonora baseada na obra infantil de Jorge Amado chamada “O gato malhado e a andorinha Sinhá”.
No jardim, lugar mágico da casa, um dos espaços ressalta a relação entre o Obá (posto civil que exercia no Ilê Axé Apô Afonjá) Jorge Amado e o Candomblé, com um depoimento inédito de Mãe Stella abordando a amizade com o escritor e fundamentos sobre a religião de matriz africana. No mesmo espaço, o visitante pode interagir virtualmente com Carlinhos Brown utilizando instrumentos típicos dos rituais do Candomblé. Vale lembrar que Jorge Amado, quando deputado constituinte, em 1945, foi autor da lei que assegura o direito à liberdade de culto religioso no Brasil.
Leituras e sabores
“Não escrevi meu primeiro livro pensando em ficar famoso. Escrevi pela necessidade de expressar o que sentia”, disse uma vez Jorge Amado, que publicou o primeiro romance – “O país do Carnaval” – em 1931, com apenas 19 anos de idade. Após a morte, em 6 de agosto de 2001, quatro dias antes de completar 89, o mais famoso escritor brasileiro deixou 45 livros publicados, segundo a Fundação Casa de Jorge Amado. Grande parte dessas obras teve trechos lidos e gravados por artistas e familiares que podem ser vistos na residência da Rua Alagoinhas.
No total, são 41 leituras em vídeo. Elas podem ser vistas no espaço “Sala das leituras”, ao lado da biblioteca, em uma tela de cinema. Entre as pessoas que fizeram leituras de trechos das obras de Jorge Amado estão nomes como Caetano Veloso, Regina Casé, Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Sônia Braga, Mariana Ximenez, Marisa Orth, Mateus Solano, Paloma Amado, Milton Gonçalves e Paulinho da Viola. “Nessas leituras fica evidente a atemporalidade de Jorge Amado, um escritor à frente do seu tempo e que era popular porque sempre retratou o povo”, afirmou Gringo Cardia.
Dois espaços são reservados à gastronomia na vida e no trabalho de Jorge Amado e Zélia Gattai: “Os amados sabores de Jorge” e “Cozinha de Dona Flor”. A quituteira Dadá ensina algumas das receitas de delícias que marcaram presenças em livros como “Dona Flor e seus dois maridos”, como a punheta (bolinho de estudante), vatapá, caruru e acarajé. Esses dois espaços foram carinhosamente preparados por Paloma Amado, filha do casal de escritores, e autora do livro “A comida baiana de Jorge Amado”, reunindo receitas e histórias de pratos típicos que aparecem nas obras do pai.